E por que não sonhar?

E você estava
Esperando voar
Mas como chegar
Até as nuvens
Com os pés no chão...
Eu era um lobisomem juvenil - Legião Urbana
Dado Villa-Lobos/Renato Russo/Marcelo Bonfá

2.3


22 de dezembro, um dia atípico, certamente. O meu número passara a ser vinte-e-três, e o 3, tomava o lugar do 2 me contrariando bastante. Não que eu achasse de todo mal completar verões, mas porque 22 se tornou o meu número preferido, o que adquiriu mais significado nos meus, agora, 23 anos de vida incompletos. Aos vinte-e-dois perdi-me de amor, e isso me era poético, dois e dois.

Abri os olhos com os versos de Fernando Pessoa a perambular por entre os meus turvos pensamentos: “No tempo em que festejavam o dia dos meus anos, Eu tinha a grande saúde de não perceber coisa nenhuma”. No tempo em que festejavam... Fes-te-ja-vam. Neste ano não haveria festa. O primeiro em que nada fora programado. E eu possuo saúde o suficiente para perceber este detalhe. Eu não estava para comemorações, mas ainda assim, este fato me incomodava. Eu não queria festa, mas eu também não queria que os meus necessários tivessem aceitado este pedido tão facilmente, sem nem tentar, ao menos, dissuadir-me. Conformei-me com o inevitável, não existiria bolo, velinhas e gente cantando o parabéns-pra-você para mim.

- Oras, o que mais poderia querer-se? Ser contrariada? Isto era contraditório. Uma pessoa querendo que o seu próprio pedido não se realizasse. Faça-me o favor, Raquel, você e suas contradições outra vez! Apronte-se e vá trabalhar, é o melhor que você faz. E, a propósito, ele não vai se lembrar – discuti com a Raquel dos 22.

Para variar, cheguei à minha lavoura cibernética atrasada. O leitor de digitais indicava 8h23min. Quanta ironia – pensei – 23! Segui meu curso em direção à minha cela, como costumo dizer. Destranquei a porta, acendi a luz, liguei o arcondicionado e o computador para mais um dia de labuta. Sentei-me na cadeira que é destinada a mim e que eu detesto por me causar dores musculares fortíssimas, quem sabe poderiam trocar-me a cadeira em meu aniversário? Disseram-me que estavam, apenas, esperando que a nova chegasse. Seria um contentamento para o meu dia. Mas antes mesmo de o ruwindows iniciar, uma das minhas estrelas adentrou a sala com um sorriso e um olhar que dispersaram a minha escuridão. Carregava consigo um cartão e um artesanato, uma vilinha interiorana ‘malabaricamente’ colocada dentro de uma garrafa! Presenteou-me. Ela mesma estava retratada ali, a simplicidade, que era o espírito desta minha estrela. Depois disto a minha sala parecia uma constelação, todos os meus astros foram me ver e os presentes não pararam: um anjinho, uma bijuteria, uma boneca de pano, um livro, perfumes, lingeries, nécessaires e até flores!

Flores pelas quais o meu coração saltou para a garganta, quando a recepcionista abriu a porta e deixou que o entregador as desse em mãos, em minhas mãos. Ai, meus Deus, de quem poderiam ser? Será que ele lembrara-se de mim? E fui tremulamente abrindo o cartão. Suspirei, não eram dele –pensamos que fomos importantes demais, não é mermo? Bem, não eram dele e não posso negar que as primeiras flores que recebi não me alegraram como eu imaginei nos meus sonhos de meninarréa. Eu já estava em prantos, pela emoção causada pela chuva de carinhos, mimos, desejos e sorrisos, que continuei assim, chovendo junto com eles.

E, lavada, por minha própria chuva, com os pensamentos limpos, pude perceber a grandeza de tudo o que estava acontecendo comigo. Gigantescas surpresas o meu dia, 22, reservou-me. As flores não foram dele e, agora, sei que de pessoa melhor não poderiam ter sido. O presente não foram as flores, que murchariam e sim o “quem ganhou o presente fui eu, por ter você em minha vida” que estava escrito no cartão.

Assim como não foram o artesanato, que poderia se quebrar, nem o anjinho, que eu poderia perder, nem a boneca de pano, que poderia se descosturar, nem o colar colorido, que poderia se desfazer, nem o livro, que poderia se rasgar, nem as lingeries, que estavam fadadas a serem trocadas, e muito menos as nécessaires as verdadeiras dádivas e sim as palavras que não se quebrarão, perderão, descosturarão, desfarão, rasgarão ou serão trocadas, que vieram com os presentes.




E o abraço, molhado e soluçado, isento de palavras, que eu ganhei que tinha as nécessaires como acompanhamento. Além dos outros inúmeros mimos e carinhos, como o primeiro e-mail que li no dia 22 vindo de uma parte minha que mora em outro estado, cujo título era “Primeiro eu” e eu não poderia esquecer-me do sms que me chegara à 1h34min da madrugada e que me arrancara um sorriso sonolento. Foram estes os tesouros que me ofertaram durante o dia e eu voltei para casa me sentindo como nunca antes, parecendo a Mamãe Noel e com o coração em êxtase. Não tinha havido a festa, nem a que eu costumava ter no trabalho, porém eu não poderia ter me sentido mais querida e realizada.

Ao chegar em casa encontrei meus pais ainda lá, causando-me espanto, pois eles tinham um compromisso com o grupo de oração deles, o que era também um dos motivos para não haver a minha festa. Recebi os meus abraços, beijos e congratulações dos meus necessários, e fui logo contando a história de cada um dos presentes com os quais eu chegara. Todos ficaram maravilhados com o relato de como fora o meu dia, de como eu estava feliz com tudo aquilo e, para minha surpresa, papai, mamãe e o melhor irmão do mundo deram-me de presente o aparelho de DVD que lê DviX que há tempos eu os importunava para comprar =D. Como se já não fosse o bastante, meus tios e meu chefe com a família chegam trazendo uma torta de chocolate e uma sobremesa, tudo doce como eu preferia! E a in[esperada] festa se fez ali, no improviso, com direito a velinha e parabéns-pra-mim.

Os meus pais tinham um compromisso e precisavam ir, porém deixaram-me em boa companhia. A noite foi agradável com muitos risos e histórias de outrora. Eu estava FELIZ. Já haviam sido tão generosos comigo que eu não me considerava merecedora de tanto. Mas eu acho que Deus, realmente, queria me falar algo mais naquele dia e meu tio pediu-me para que eu ouvisse isto, o que, certamente, foi um dos mais valiosos presentes do dia, um presente para o meu espírito!

Encerrei o meu dia 22 de dezembro de 2009 sentindo falta do "parabéns" dele e digitando um texto com os meus dedos de não mais 22 anos de idade que foi publicado e posteriormente retirado. Retirado, porque, não sabia eu, eu ainda precisava viver o 23, eu precisava ser 23, para publicá-lo.

No dia 23, aos 23 anos um e-mail enviado para o meu trabalho na noite anterior foi lido. Era mais uma espécie de “eu me lembrei” do que qualquer outra coisa. Ele lembrou-se, o que já considerei de bom tamanho, devido às circunstâncias. A minha falta dispersou-se e eu me senti importante naquela manhã 23, ainda mais quando um dos diretores foi, pessoalmente, convocar-me para uma reunião devido a uma grande falha cometida por mim em uma apresentação muito importante. Na tal reunião encontrei uma boa galera reunida única e exclusivamente para comemorar os meus 23 anos no dia 23 de dezembro. Outra festa e outro parabéns-pra-mim. Onde recebi mais palavras doces e de pessoas que eu não imaginava que me viam como descreveram. Senti-me até uma pessoa legal, de verdade.

E tudo isso foi em um dia dos meus 23 anos, minha gente, vinte-e-três.

- É, Raquel você é, sim, muito importante – disse a Raquel dos 23.

Exausta!


Cansada.
Daquilo que me cerca, daquilo que me preenche.
Eu queria férias de mim =/

Beije-me

Beije-me sob o crepúsculo. 
Leve-me pra fora, no chão iluminado pela lua.
Levante sua mão aberta, faça a banda tocar e faça os vaga-lumes dançarem. 
A lua prateada está brilhando, então me beije.

Naquele dia acordara diferente, mas o dia transcorrera como um dia qualquer, sem grandes acontecimentos ou novidades: lar, trabalho, e, logo mais, aula. Pegou sua mochila, a qual apelidara de casco, pois a via como sua casa itinerante, retirou de dentro dela sua bomba de combustível, popularmente chamada de mp3 para abastecer-se com os harmoniosos sons armazenados no seu potente reservatório de 1Gb! Músicas apaixonadamente selecionadas que com amor eram ouvidas. Colocou os fones nos ouvidos, a pesada casa nas costas e encaminhou-se para a faculdade.

Ainda era cedo e faltava muito para o tulmutuador das suas borboletas chegar, e, como de costume, foi para o campo de futebol. Gostava de ficar nas arquibancadas esperando por seu benquerer enquanto entretinha-se testando o seu inglês ao tentar traduzir as músicas que ouvia. Mas, naquele dia, justamente, o campo estava livre. Não havia ninguém por perto. Ela estava só. Defronte a um gramado sobre os quais já eram para estar projetas as luzes dos refletores, mas não havia sinal de que isso aconteceria. Pois o crepúsculo já estava adiantado e o sol, a julgar pela claridade, já estaria perto de se encobrir totalmente. Estava anoitecendo. Não resistiu ao impulso de olhar o céu mudar de cor e presenciar as estrelas se acenderem em um local tão propício! Correu para o centro do campo e deitou-se feliz da vida jogando a sua mochila para o lado e sentindo-se com uma satisfação gostosa como desde que suas borboletas passaram a voar não conseguia mais sentir.

Olhou para o céu, Sixpiense começara a cantar, a lua lhe sorriu, as estrelas iam lhe surgindo com seus cintilados exuberantes, frenéticos. Começou a sussurrar a letra da música que ouvia, ou pelo menos, as partes que conseguia extrair com o seu parco inglês. E foi tomada pelo forte desejo de que o seu menino estivesse ali ao lado da menina que era dele, mas que ele não sabia que possuía. Fechou os olhos por uns instantes para conter a lágrima e com o coração menos leve em sincronia com a voz em seus ouvidos, disse: "Beije-me".

- Como, menina?

Se ela não acreditava em magia passou a acreditar à medida que suas borboletas alçavam vôo e seu coração tentava sair do peito. Levantou-se rapidamente e deparou-se com um sorriso mais cheio que o da lua e duas estrelas mais lindas e cintilantes que as do firmamento, docemente postas em um rosto lívido de menino-sério a apenas 1,80 m do chão, sobre um corpo magro e firme. Estavam simplesmente ao seu alcance.

Éh!!! Ao alcance de sua mão! Ela poderia tocá-las, e tê-las e... beijá-las. A lua sorridente e as estrelas frenéticas estavam ali bem diante dela, a fitar-lhe nos olhos num entendimento mútuo. E, sem deixar mais um verso passar disparou:

- Beije-me sob o crepúsculo, faça a banda tocar, a lua nos ilumina...

- Uma banda não toca com um só instrumento, meu coração já tamborila cá dentro e precisa de outro para tornar-se música.

- Chega mais perto. Podes ouvir? Bate no mesmo compasso que o teu.

- Música. A nossa música. Aceitas o convite para uma dança?

- Beije-me - lho sorriu.

Dançaram o beijo mais doce de suas vidas ao som de seus corações, sob o brilho das estrelas e a benção alegre da lua.

Ela com o gosto dele na boca, ainda sem acreditar, perguntou-o:

- Isto é mágica? Não era para você estar aqui e ao mesmo tempo era.

- Acredito que possas chamar ‘isto’ desta maneira. Meu amigo chamaria de "caroninha esperta". Eu prefiro chamar de providência divina, pois sempre fui teu sem saber que também eras minha. Estás diferente, me deixaste ler-te. Agora eu sei.

E na terra dos gigantes...

... o tempo anda sumindo!


Presente ausência

Sabes, benzinho, preciso de ti. Incontáveis vezes eu tentei retirar-te de mim, ou pelo menos mover-te da ala perigosa do meu coração para uma mais amena. Não tenho conseguido, podes perceber ao ler-me, mesmo sem que eu te procure ou me faça presente. Apesar de estares longe permaneces em mim. É certo que não te tenho mais, como antes, em meus pensamentos o dia todo todos os dias, mas ainda és dono de muitos deles. Não consigo ver algo belo sem que eu te lembre, creio que isso se deve ao teu sorriso, é mágico e deverias praticá-lo mais.

Ah, meu bem, como me fizeste falta nos últimos dias! O remédio para toda mágoa que transbordou de mim, certamente, seria teu riso iluminado! Busquei a tua luz por todos os recantos do meu ser, mas só encontrei saudades turvas. Nenhum resto do ungüento que jorrava de ti, único capaz de curar meus cortes. Sem ti hei de perecer, ou do mal do mundo ou do mal de amores.

Querido, por que acabamos assim? Queria ter-te outra vez. Não, queria ter-te, ao menos, uma vez, como tu nunca te deste a mim. A tua presença me reconfortava, e, até o frio produzido pelas borboletas que se alvoroçavam no meu estômago ao ouvir tua voz a chamar-me, me enchia de vida. Sinto falta delas, nunca mais voaram dentro de mim. E o teu sorriso, (ah... o teu encanto), este tinha o dom de lançar arco-íris em mim, pintava de dia a minha noite. Sinto falta também das minhas noites-dia coloridas, as cores sumiram junto contigo e, agora, o colorido dos meus dias está desbotando, tornando-se meio noite.

Rogo-te, chéri! Vem somente mais uma vez! Traz-me um novo fôlego! Enche-me os pulmões com o teu ar!

Tu não vais vir, não é mesmo? Não te faz falta a que fui. Apenas nisso tu me dói, rapaz.

"E tanto faz.. de tudo o que ficou,
Guardo um retrato teu,
e a saudade mais bonita."
Renato Russo

Esperando o dia de esperar ninguém

Olha bem aqui!

Aqui, nos meus olhos.

Veja se ainda é possível ver a fumaça que dará lugar ao vazio, onde antes havia a chama. O fogo que aquecia a minha alma, aquele que tu mesmo acendeste e que, de maneira tão leviana, apagastes. Não sei como podes fazê-lo sem queimar-te, sem causar danos a ti também. Ou melhor, sim, bem sei como. És mais forte que eu e, posso ver agora, tua personalidade não mudou, ainda é vil. Deste esperança a mim, mês após mês me alimentaste com frágeis promessas sobre as quais edifiquei sonhos, o meu lugar no futuro. E, num gesto egoísta, com um sopro desfizeste o meu alicerce. Tomastes outra vez o que me destes e que era meu por direito.

Esgotaste-me as forças. Estou seca. Deixaste-me seca, sem abrigo sobre os meus escombros. E, como se não te bastasse o mal que me causaste ainda me forças a permanecer aí, dentro da tua vileza, pois sabes que me amarraste as mãos e as pernas e não tenho como livrar-me tão cedo.

Mas ainda sobraram-me os olhos, os ouvidos e a boca. Podes ter impedido-me de me mover, mas não vais conseguir sufocar o meu grito. E, quando eu estiver cheia outra vez, não vais alcançar o meu voo.

Não fui feita para servir a ti. Sou bem maior. Meus olhos foram feitos para brilhar e a minha alma para arder.

Portais


Ele, o dos olhos agitados

~
- É ele! É ele! E vai passar em frente à nossa rua! Depressa! Eu quero falar com ele!
- Mas é claro que eu vou falar com ele. Eu QUERO falar com ele.
- Para o carro! Isso... Abre a porta!!! Ligeiro! Eu tenho que ir logo, antes que ele atravesse!
- Mesmo quebrando a regra que eu estabeleci, eu vou fazer isso! Por favor, não me impeça! Eu PRECISO.
Desci do carro estacionado e fui em direção à esquina. Deparei-me com ele já a passar a rua.
- Será que ele não vai olhar para cá?
("Olha... eu não vou se você não vier").
E ele olhou! Avistou-me parada-patética a contemplá-lo num indeciso passo incerto em sua direção. Notando a minha vontade confusamente contida de correr ao seu encontro, ele percorreu a distância que nos separava e parou em frente a mim, na calçada alta. De ar taciturno, era mesmo ele, o dos olhos agitados a fitar os meus olhos. Outra vez pude ver suas pupilas dançarinas (ah... como eu gostava de observar o frenesi delas!). Era o único dono de um doce e fraterno olhar que impunha um entendimento sem palavras. E entre um meio sorriso ele abraçou-me inteiramente como no tempo que passou. Eu sabia, e ele também, que o que estava acontecendo não mudara a regra, que seria um instante e nada mais. Uma espécie de gás para um lampião que já estava se esvaecendo. E, no mormaço de seu abraço inteiro, ouço o sussurro de sua voz mais uma vez: "I love you so much". Sobre ele também pesava a falta do que fomos. Suspiro provando o gosto amargo de todos os transtornos que tudo o que eu sinto causou.
Alguém me chama.
É hora de ir.
Com os olhos nublados me despe[da]ço outra vez para sempre: "Eu te amo". Olhando para os meus pés e sem dizer mais nada, me viro e caminho compelidos passos em direção ao portão de minha casa, o mesmo que ouvia nossas longas conversas sobre a vida, o universo e tudo mais.
~
Acordo. Já estava amanhecendo, mas eu anoitecendo. Foi um sonho que apenas eu o sonhara.
Mais uma vez a saudade tornou a escorrer de meus olhos.

Estrelinha

- É, você tem uma luz tão grande que, às vezes, não compreendo como pode estar só e, assim, o ser.

"Vem, acende a sua luz perto de mim"
Vagalume - Pato Fu

Pendendo

Resolvendo umas pendências tuas que, ainda, me prendem do lado de fora.
Me deixando ir para lá e para cá, sem segurança e nem onde me apoiar.
Mas, acredite, estou para restabelecer o meu lugar.

Ôxe, ainda te tiro inteiro 'daquidentro' e te jogo, todo, nestas letras tortas.

Vislumbramento

Abriu os olhos. O recinto estava escuro a única luz provinha de uma pequena fresta entre as telhas a qual projetava imagens turvas da vida deserta que acontecia do lado de fora.  Sentou-se na cama, olhou em volta e se deteve a perscrutar os ruídos de uma madrugada insossa e a luz de sombras esboçadas no chão.

Ouviu aquele burburinho de acontecimentos vazios que costumam preencher a existência de seres rasos que vagam na noite em busca de algo que os façam perceber que estão vivos. Queriam sentir, mas faltava-lhes a sensibilidade para tal.

Era isto, somente isto o que a diferenciava dos autômatos que, como ela, estavam acordados: profundidade. Possibilidades infinitas de ser e não de, apenas, existir.

Os outros que desfrutavam a pseudo-sensação de euforia e contentamento que chega quando o sol se despede e não ilumina a aridez de espírito que os cercam, viviam menos do que ela, trancada naquele quarto quieto.

Uma quietude que efervescia de sentimentos, de paixões, de vida. Estava, agora, regada por um mar de águas doces e refrescantes que a cercava e que ela ansiava mostrar e derramá-lo naquelas almas ermas, rasas, opacas e sedentas.

Era quase incontrolável a sua vontade de repartir aquela simplicidade e leveza fundamental que corria em suas veias, fazer os demais sentirem o que ela sentia, transmitir o seu entusiasmo pela vida. Ela, também, estava sedenta. Sede de gente. Sede de experiências, de contato com o ser humano e toda a troca mútua das partes de si que ocorre quando, verdadeiramente, se encontram.

Depois de muito tempo teve plena certeza do que queria. Naquele instante, o quarto pacato se iluminou, pois os seus olhos,assim como os astros de seu adorado firmamento, brilhavam. E o céu se fez ali, na terra.

Mundo mundo vasto mundo,
mais vasto é meu coração.
Carlos Drummond de Andrade

As borboletas

Dizem que não se deve procurar por essas tais borboletas, nem tentar pegá-las, pois é quando menos se espera que surgem e pousam sobre aqueles que suportaram o período necessário.

No meu coração de menina eu resistia a essa idéia com a veemência obstinada dos seres que acabaram de iniciar a grande jornada. Como uma criatura tão bela e delicada (pelo que dizem), poderia ser tão temperamental privando a sua apreciação aos que anseiam contemplá-la e sentir a sutileza do toque de suas asas?

Bem, depois de muito andar e me perder, eu encontrei o lugar onde elas se escondem! Deslumbrada com a magnitude do meu achado, não resisti ao impulso de tentar alcançá-las, mas voavam tão alto que meus saltos acanhados e a minha desastrada habilidade infantil não foram capazes de me conseguir uma.

Ah... Como eu fiquei chateada!  Esperneei e chorei, mas nenhuma se compadeceu do meu lamento. Aos poucos o meu pranto foi enfraquecendo e a conformação me consolando. Eu teria que aguardar por sua boa-vontade!

Nossa, como são esquisitas e, ainda assim, almejadas, essas borboletas! Acuada pelo secreto tempo imposto por elas, cá estou eu a esperar uma pousar e sem saber como voltar...


A nossa pequenez


Minguante


Ao fundo a música cessou. Olhei para o céu: havia uma linda cena no firmamento. Lembrei de você. A Lua, a qual diversas vezes observamos, estava com o seu sorriso minguante. Será que você, ainda, me recordava? Meus olhos nublaram-se como os meus pensamentos. Detive-me na contemplação daquela forma de riso triste (você, ainda, estava forte em mim) e olhando para a vizinha e cintilante Castor eu o via. Mais ao lado, Pollux me presenteava com o seu fulgor. Esta seria eu? Tão próximas uma da outra, aos meus olhos estavam, e milhares de anos-luz separadas no infinito azul – divaguei. Porém, havia mais alguém que não era para estar ali, pois uma quarta luz estava acesa, um planeta intruso em minha cena lírica perfeita.

Pla.ne.ta, do grego "planētēs" (errante, aquele que vagueia), luzes que se movem através do céu em desacordo com as estrelas.

Um astro errante, errado. E, olhando para a tristeza do luar, percebi que, na verdade, o papel que me cabia naquele teatro noturno, naquela cena poética, era este. Eu era a errante, a errada. Não fora designado para mim o papel de estar ao seu lado. Eu deveria seguir o meu ciclo, mais alguns dias e eu não estaria mais ali, próxima a você. Ser Pollux competia à outra pessoa. Esta era a realidade. O meu presente, meu futuro. Não mais você. E como a Lua estava eu fiquei: minguante.

Eu te amo


Ao homem vivente sobre esta terra a quem devo não só a vida, mas, também, o que vou levar além dela.

Menina embaçada

A cada pôr-do-sol vem a sensação que o mundo mudou, o tempo passou. Ou será que fui eu que mudei e passei? É tudo repentino e desfocado. Às vezes sou capaz de me ver na imagem translúcida de momentos encantados por quais atravessei. Como quando, por ocasiões, o avistava repousando, descansado em sua arfante e sonora respiração. Eu sabia que estava incumbida de resgatá-lo de seus sonhos, mas não me adiantava tanto em fazê-lo. Tão logo eu estava ao seu lado, não resistia à tentação de reclinar minha cabeça  sobre o seu vasto abdômen e, lá, permanecia perscrutando suas entranhas em seu vital movimento ins-pi-ra-ex-pi-ra. E, com você, inspirava e expirava, sobre seu macio estômago subia e descia naquela profusão de ruídos que me traziam paz e proteção. Eu estava plena. Eu era plena como só na meninice se é, mas, hoje, passei. Há muito adormeci a minha menina e, às vezes, não sou mais capaz de me ver, embora seja, apenas, ela que você enxerga.



Acho até que estou indo bem...


Quero que saibas que me lembro
Queria até que pudesses me ver
És parte ainda do que me faz forte
E, pra ser honesto,
Só um pouquinho infeliz
Giz - Legião Urbana

Como?

Como podes tu dizer-se sozinho
Se meu pensamento está contigo
Assim como a saudade tua
Ao meu lado se encontra?

Reclamas de solidão
A qual te referes?
A de seres
Ou a de sentir-se?

Amizade

Para os meus.

Outro dia me perguntaram quem eu era...

Na hora fiquei sem saber o que dizer e, agora, para falar a verdade, continuo na mesma condição. Não me conheço ao ponto de me definir. Mudo o tempo todo. Quem sabe eu seja, apenas, mais uma pessoa que vê beleza na simplicidade, que se emociona ao contemplar um céu bonito, que gosta de poemas, que acha sublime o amor, mesmo quando é triste.

Quem sabe?

Uma pessoa que tem arrependimentos para narrar dos erros cometidos e também dos não cometidos. Que crê em Deus por poder senti-lo em si, no brilho, na sombra, no medo. Que, apesar das partes sofridas da vida, ainda se acha capaz de acreditar. Acreditar no homem, no futuro, no verbo amar.

Quem sabe eu seja, apenas, mais uma pessoa que ama, que sofre, que confia, que se importa. E que mesmo sofrendo não abre mão de amar, não abre mão de se deixar viver tudo e da forma mais intensa.

Quem sabe eu seja, apenas, mais uma pessoa que sente saudade, e, nela, uma dor pungente, mas que vai-se percebendo menos dolorida, como se fosse um desespero alegre. Pois amou e isto é o que importa. A-m-o-u.

Quem sabe eu seja, apenas, mais uma pessoa que sofreu, que morreu por amor. E que, por este, também ressuscitou, pois é deste que vem a certeza de que sempre existirá um porto, mesmo se o mar parecer tão extenso e não se consiga ver a terra firme. Há um porto.

Quem sabe eu seja, apenas, mais uma pessoa como tu és, se te identificas com o que lestes. Se desta forma és, então eu não seja, apenas, mais uma pessoa e sim, uma parte do que és. Pois em ti me encontro e em mim te encontras.

E no final, talvez, eu seja, nós sejamos, a soma de outros tantos como nós.

Meu ideal seria escrever...

Meu ideal seria escrever uma história tão engraçada que aquela moça que está doente naquela casa cinzenta quando lesse minha história no jornal risse, risse tanto que chegasse a chorar e dissesse — "ai meu Deus, que história mais engraçada!" E então a contasse para a cozinheira e telefonasse para duas ou três amigas para contar a história; e todos a quem ela contasse rissem muito e ficassem alegremente espantados de vê-la tão alegre. Ah, que minha história fosse como um raio de sol, irresistivelmente louro, quente, vivo, em sua vida de moça reclusa, enlutada, doente. Que ela mesma ficasse admirada ouvindo o próprio riso, e depois repetisse para si própria — "mas essa história é mesmo muito engraçada!"
Que um casal que estivesse em casa mal-humorado, o marido bastante aborrecido com a mulher, a mulher bastante irritada com o marido, que esse casal também fosse atingido pela minha história. O marido a leria e começaria a rir, o que aumentaria a irritação da mulher. Mas depois que esta, apesar de sua má vontade, tomasse conhecimento da história, ela também risse muito, e ficassem os dois rindo sem poder olhar um para o outro sem rir mais; e que um, ouvindo aquele riso do outro, se lembrasse do alegre tempo de namoro, e reencontrassem os dois a alegria perdida de estarem juntos.
Que nas cadeias, nos hospitais, em todas as salas de espera a minha história chegasse — e tão fascinante de graça, tão irresistível, tão colorida e tão pura que todos limpassem seu coração com lágrimas de alegria; que o comissário do distrito, depois de ler minha história, mandasse soltar aqueles bêbados e também aquelas pobres mulheres colhidas na calçada e lhes dissesse — "por favor, se comportem, que diabo! eu não gosto de prender ninguém!" E que assim todos tratassem melhor seus empregados, seus dependentes e seus semelhantes em alegre e espontânea homenagem à minha história.
E que ela aos poucos se espalhasse pelo mundo e fosse contada de mil maneiras, e fosse atribuída a um persa, na Nigéria, a um australiano, em Dublin, a um japonês, em Chicago — mas que em todas as línguas ela guardasse a sua frescura, a sua pureza, o seu encanto surpreendente; e que no fundo de uma aldeia da China, um chinês muito pobre, muito sábio e muito velho dissesse: "Nunca ouvi uma história assim tão engraçada e tão boa em toda a minha vida; valeu a pena ter vivido até hoje para ouvi-la; essa história não pode ter sido inventada por nenhum homem, foi com certeza algum anjo tagarela que a contou aos ouvidos de um santo que dormia, e que ele pensou que já estivesse morto; sim, deve ser uma história do céu que se filtrou por acaso até nosso conhecimento; é divina."
E quando todos me perguntassem — "mas de onde é que você tirou essa história?" — eu responderia que ela não é minha, que eu a ouvi por acaso na rua, de um desconhecido que a contava a outro desconhecido, e que por sinal começara a contar assim: "Ontem ouvi um sujeito contar uma história..."
E eu esconderia completamente a humilde verdade: que eu inventei toda a minha história em um só segundo, quando pensei na tristeza daquela moça que está doente, que sempre está doente e sempre está de luto sozinha naquela pequena casa cinzenta de meu bairro.
Rubem Braga