Vislumbramento

Abriu os olhos. O recinto estava escuro a única luz provinha de uma pequena fresta entre as telhas a qual projetava imagens turvas da vida deserta que acontecia do lado de fora.  Sentou-se na cama, olhou em volta e se deteve a perscrutar os ruídos de uma madrugada insossa e a luz de sombras esboçadas no chão.

Ouviu aquele burburinho de acontecimentos vazios que costumam preencher a existência de seres rasos que vagam na noite em busca de algo que os façam perceber que estão vivos. Queriam sentir, mas faltava-lhes a sensibilidade para tal.

Era isto, somente isto o que a diferenciava dos autômatos que, como ela, estavam acordados: profundidade. Possibilidades infinitas de ser e não de, apenas, existir.

Os outros que desfrutavam a pseudo-sensação de euforia e contentamento que chega quando o sol se despede e não ilumina a aridez de espírito que os cercam, viviam menos do que ela, trancada naquele quarto quieto.

Uma quietude que efervescia de sentimentos, de paixões, de vida. Estava, agora, regada por um mar de águas doces e refrescantes que a cercava e que ela ansiava mostrar e derramá-lo naquelas almas ermas, rasas, opacas e sedentas.

Era quase incontrolável a sua vontade de repartir aquela simplicidade e leveza fundamental que corria em suas veias, fazer os demais sentirem o que ela sentia, transmitir o seu entusiasmo pela vida. Ela, também, estava sedenta. Sede de gente. Sede de experiências, de contato com o ser humano e toda a troca mútua das partes de si que ocorre quando, verdadeiramente, se encontram.

Depois de muito tempo teve plena certeza do que queria. Naquele instante, o quarto pacato se iluminou, pois os seus olhos,assim como os astros de seu adorado firmamento, brilhavam. E o céu se fez ali, na terra.

Mundo mundo vasto mundo,
mais vasto é meu coração.
Carlos Drummond de Andrade

As borboletas

Dizem que não se deve procurar por essas tais borboletas, nem tentar pegá-las, pois é quando menos se espera que surgem e pousam sobre aqueles que suportaram o período necessário.

No meu coração de menina eu resistia a essa idéia com a veemência obstinada dos seres que acabaram de iniciar a grande jornada. Como uma criatura tão bela e delicada (pelo que dizem), poderia ser tão temperamental privando a sua apreciação aos que anseiam contemplá-la e sentir a sutileza do toque de suas asas?

Bem, depois de muito andar e me perder, eu encontrei o lugar onde elas se escondem! Deslumbrada com a magnitude do meu achado, não resisti ao impulso de tentar alcançá-las, mas voavam tão alto que meus saltos acanhados e a minha desastrada habilidade infantil não foram capazes de me conseguir uma.

Ah... Como eu fiquei chateada!  Esperneei e chorei, mas nenhuma se compadeceu do meu lamento. Aos poucos o meu pranto foi enfraquecendo e a conformação me consolando. Eu teria que aguardar por sua boa-vontade!

Nossa, como são esquisitas e, ainda assim, almejadas, essas borboletas! Acuada pelo secreto tempo imposto por elas, cá estou eu a esperar uma pousar e sem saber como voltar...


A nossa pequenez


Minguante


Ao fundo a música cessou. Olhei para o céu: havia uma linda cena no firmamento. Lembrei de você. A Lua, a qual diversas vezes observamos, estava com o seu sorriso minguante. Será que você, ainda, me recordava? Meus olhos nublaram-se como os meus pensamentos. Detive-me na contemplação daquela forma de riso triste (você, ainda, estava forte em mim) e olhando para a vizinha e cintilante Castor eu o via. Mais ao lado, Pollux me presenteava com o seu fulgor. Esta seria eu? Tão próximas uma da outra, aos meus olhos estavam, e milhares de anos-luz separadas no infinito azul – divaguei. Porém, havia mais alguém que não era para estar ali, pois uma quarta luz estava acesa, um planeta intruso em minha cena lírica perfeita.

Pla.ne.ta, do grego "planētēs" (errante, aquele que vagueia), luzes que se movem através do céu em desacordo com as estrelas.

Um astro errante, errado. E, olhando para a tristeza do luar, percebi que, na verdade, o papel que me cabia naquele teatro noturno, naquela cena poética, era este. Eu era a errante, a errada. Não fora designado para mim o papel de estar ao seu lado. Eu deveria seguir o meu ciclo, mais alguns dias e eu não estaria mais ali, próxima a você. Ser Pollux competia à outra pessoa. Esta era a realidade. O meu presente, meu futuro. Não mais você. E como a Lua estava eu fiquei: minguante.

Eu te amo


Ao homem vivente sobre esta terra a quem devo não só a vida, mas, também, o que vou levar além dela.

Menina embaçada

A cada pôr-do-sol vem a sensação que o mundo mudou, o tempo passou. Ou será que fui eu que mudei e passei? É tudo repentino e desfocado. Às vezes sou capaz de me ver na imagem translúcida de momentos encantados por quais atravessei. Como quando, por ocasiões, o avistava repousando, descansado em sua arfante e sonora respiração. Eu sabia que estava incumbida de resgatá-lo de seus sonhos, mas não me adiantava tanto em fazê-lo. Tão logo eu estava ao seu lado, não resistia à tentação de reclinar minha cabeça  sobre o seu vasto abdômen e, lá, permanecia perscrutando suas entranhas em seu vital movimento ins-pi-ra-ex-pi-ra. E, com você, inspirava e expirava, sobre seu macio estômago subia e descia naquela profusão de ruídos que me traziam paz e proteção. Eu estava plena. Eu era plena como só na meninice se é, mas, hoje, passei. Há muito adormeci a minha menina e, às vezes, não sou mais capaz de me ver, embora seja, apenas, ela que você enxerga.



Acho até que estou indo bem...


Quero que saibas que me lembro
Queria até que pudesses me ver
És parte ainda do que me faz forte
E, pra ser honesto,
Só um pouquinho infeliz
Giz - Legião Urbana

Como?

Como podes tu dizer-se sozinho
Se meu pensamento está contigo
Assim como a saudade tua
Ao meu lado se encontra?

Reclamas de solidão
A qual te referes?
A de seres
Ou a de sentir-se?

Amizade

Para os meus.

Outro dia me perguntaram quem eu era...

Na hora fiquei sem saber o que dizer e, agora, para falar a verdade, continuo na mesma condição. Não me conheço ao ponto de me definir. Mudo o tempo todo. Quem sabe eu seja, apenas, mais uma pessoa que vê beleza na simplicidade, que se emociona ao contemplar um céu bonito, que gosta de poemas, que acha sublime o amor, mesmo quando é triste.

Quem sabe?

Uma pessoa que tem arrependimentos para narrar dos erros cometidos e também dos não cometidos. Que crê em Deus por poder senti-lo em si, no brilho, na sombra, no medo. Que, apesar das partes sofridas da vida, ainda se acha capaz de acreditar. Acreditar no homem, no futuro, no verbo amar.

Quem sabe eu seja, apenas, mais uma pessoa que ama, que sofre, que confia, que se importa. E que mesmo sofrendo não abre mão de amar, não abre mão de se deixar viver tudo e da forma mais intensa.

Quem sabe eu seja, apenas, mais uma pessoa que sente saudade, e, nela, uma dor pungente, mas que vai-se percebendo menos dolorida, como se fosse um desespero alegre. Pois amou e isto é o que importa. A-m-o-u.

Quem sabe eu seja, apenas, mais uma pessoa que sofreu, que morreu por amor. E que, por este, também ressuscitou, pois é deste que vem a certeza de que sempre existirá um porto, mesmo se o mar parecer tão extenso e não se consiga ver a terra firme. Há um porto.

Quem sabe eu seja, apenas, mais uma pessoa como tu és, se te identificas com o que lestes. Se desta forma és, então eu não seja, apenas, mais uma pessoa e sim, uma parte do que és. Pois em ti me encontro e em mim te encontras.

E no final, talvez, eu seja, nós sejamos, a soma de outros tantos como nós.

Meu ideal seria escrever...

Meu ideal seria escrever uma história tão engraçada que aquela moça que está doente naquela casa cinzenta quando lesse minha história no jornal risse, risse tanto que chegasse a chorar e dissesse — "ai meu Deus, que história mais engraçada!" E então a contasse para a cozinheira e telefonasse para duas ou três amigas para contar a história; e todos a quem ela contasse rissem muito e ficassem alegremente espantados de vê-la tão alegre. Ah, que minha história fosse como um raio de sol, irresistivelmente louro, quente, vivo, em sua vida de moça reclusa, enlutada, doente. Que ela mesma ficasse admirada ouvindo o próprio riso, e depois repetisse para si própria — "mas essa história é mesmo muito engraçada!"
Que um casal que estivesse em casa mal-humorado, o marido bastante aborrecido com a mulher, a mulher bastante irritada com o marido, que esse casal também fosse atingido pela minha história. O marido a leria e começaria a rir, o que aumentaria a irritação da mulher. Mas depois que esta, apesar de sua má vontade, tomasse conhecimento da história, ela também risse muito, e ficassem os dois rindo sem poder olhar um para o outro sem rir mais; e que um, ouvindo aquele riso do outro, se lembrasse do alegre tempo de namoro, e reencontrassem os dois a alegria perdida de estarem juntos.
Que nas cadeias, nos hospitais, em todas as salas de espera a minha história chegasse — e tão fascinante de graça, tão irresistível, tão colorida e tão pura que todos limpassem seu coração com lágrimas de alegria; que o comissário do distrito, depois de ler minha história, mandasse soltar aqueles bêbados e também aquelas pobres mulheres colhidas na calçada e lhes dissesse — "por favor, se comportem, que diabo! eu não gosto de prender ninguém!" E que assim todos tratassem melhor seus empregados, seus dependentes e seus semelhantes em alegre e espontânea homenagem à minha história.
E que ela aos poucos se espalhasse pelo mundo e fosse contada de mil maneiras, e fosse atribuída a um persa, na Nigéria, a um australiano, em Dublin, a um japonês, em Chicago — mas que em todas as línguas ela guardasse a sua frescura, a sua pureza, o seu encanto surpreendente; e que no fundo de uma aldeia da China, um chinês muito pobre, muito sábio e muito velho dissesse: "Nunca ouvi uma história assim tão engraçada e tão boa em toda a minha vida; valeu a pena ter vivido até hoje para ouvi-la; essa história não pode ter sido inventada por nenhum homem, foi com certeza algum anjo tagarela que a contou aos ouvidos de um santo que dormia, e que ele pensou que já estivesse morto; sim, deve ser uma história do céu que se filtrou por acaso até nosso conhecimento; é divina."
E quando todos me perguntassem — "mas de onde é que você tirou essa história?" — eu responderia que ela não é minha, que eu a ouvi por acaso na rua, de um desconhecido que a contava a outro desconhecido, e que por sinal começara a contar assim: "Ontem ouvi um sujeito contar uma história..."
E eu esconderia completamente a humilde verdade: que eu inventei toda a minha história em um só segundo, quando pensei na tristeza daquela moça que está doente, que sempre está doente e sempre está de luto sozinha naquela pequena casa cinzenta de meu bairro.
Rubem Braga